Samba, um peregrino – A História do Samba

Conheça um pouco a mais acerca da história do samba – de suas origens à revalorização contemporânea – por meio deste artigo fabuloso de nosso novo colunista Lellison Souza, também conhecido como El Memorioso.

Samba, um peregrino

“Sou eu quem levo a alegria
Para milhões de corações brasileiros
Salve o samba, queremos samba
Quem está pedindo é a voz do povo de um país
Salve o samba, queremos samba
Essa melodia de um Brasil feliz”
Eu Sou O Samba, de Zé Ketti

História do Samba – A revalorização contemporânea

História do Samba

No centro histórico da capital capixaba, Vitória, paulatinamente ocorre uma revalorização do samba, com a abertura de barzinhos e apresentações de artistas locais e desde meados dos anos 2000 uma sucessão de projetos possibilitou que artistas nacionais e locais se apresentassem na Estação Porto, no Mercado São Sebastião e no Teatro Carlos Gomes, boa parte das atrações tendo sambas no repertório. Em Brasília há grupos que tocam regularmente pela cidade e uma área chamada Cruzeiro é conhecida como o maior reduto de cariocas do Distrito Federal, sendo o apreço pelo samba um dos responsáveis pela fama da região. Cito essas duas cidades como exemplos de um fenômeno iniciado na virada dos anos 90 para os anos 2000, a saber, o renascimento do samba na Lapa, reduto tradicional da boemia carioca, que dentre outros efeitos aumentou as possibilidades de ouvirmos ao vivo apresentações de sambas. Paralelo a esse fenômeno, ocorre ininterruptamente o desenvolvimento tecnológico, nos permitindo ter acesso a um conjunto cada vez maior de material musical sem sair de nossas casas. Em resumo, o samba nos é mais acessível hoje do que uma década atrás.

Seja numa festa ou num encontro, seja como fundo musical para diversas tarefas ou só para não deixar o ambiente silencioso, grande número de pessoas, incluindo eu e possivelmente você, escuta samba, bem como outros gêneros musicais, com alguma regularidade. E as canções são ouvidas com o prazer que a música, esta arte de manifestar os variados anseios de nossa alma mediante o som, proporciona nos instantes em que entra nos ouvidos e se espalha pelo corpo. É um prazer imediato. Apesar de poder despertar lembranças e desejos, o som nos proporciona sensações arraigadas no presente e tal característica, absorvida por nós quase como um instinto, por vezes desestimula outros prazeres musicais, como saber a história das canções e seus significados e como surgiram e se desenvolveram os gêneros musicais que tanto gostamos, ou evitamos. É esse prazer de conhecer a historicidade da música que esse texto evoca.

Não se trata de dizer que sem esse conhecimento o contato com a música fica ruim ou incompleto, longe disso. Na verdade, trata-se da possibilidade de variar e enriquecer nossa experiência musical. De ver como a sonoridade do samba de hoje difere do de 90 ou 50 anos atrás, de entender que papel a música ocupou na sociedade através das décadas. Crescemos acostumados a ouvir música como se ela fosse um eterno presente, sem notarmos que ela é uma manifestação cultural e social e, como tal, tem uma história, um desenvolvimento. E são estas breves reflexões sobre algumas discussões que envolvem a história do samba que gostaria de compartilhar com você.

História do Samba – Reflexões

História do Samba Carybé

Meu interesse pelo samba é antigo. Gostaria de contar uma recordação dos meus primeiros anos. Na época eu não entendia as coisas de forma teleológica, tudo era uma espécie de presente interminável e o plano mais distante era na verdade o desejo crescente pela próxima viagem de férias a MG. Era a minha infância em Cariacica. Infância de rotinas, dentre elas ver, duas noites por semana, uma pequena multidão composta na maioria das vezes por rostos conhecidos, se reunir no subsolo da casa de minha avó, minha casa, para celebrar sua fé na Umbanda em meio a cânticos e batidas de tambores.

Muitos anos depois, meditando sobre quando começou meu interesse pelo samba, pensei ser essa lembrança perfeita para me servir de gênese e explicar a partir de que se desencadeou esta que é uma das maiores paixões de minha vida. Bastaria fazer uma associação entre o som dos tambores e a acentuada rítmica percussiva do samba. Mas não foi assim que aconteceu. Comecei a gostar de samba por pura influência de amigos, de quem recebi muitas indicações e opiniões. Porque então citei a reminiscência? Por ela ilustrar uma obsessão moderna: especificar com a máxima precisão o início de um fenômeno. Que esta exatidão é útil em vários campos do saber é certo, mas nem sempre ela é possível. E as origens do samba estão no meio de grandes discussões. Desde que o samba é samba é assim.

A primeira dessas discussões é étnica. Há quem diga até que o samba é de origem indígena, se há quem defenda uma origem europeia desconheço. Felizmente, ninguém ignora a herança da cultura negra na formação do samba. Na virada do século XIX para o XX intensifica-se no Brasil as pesquisas sobre as práticas e crenças culturais negras, muitas vezes resultando em escritos preconceituosos e difamatórios. O lado positivo foi que pela primeira vez a cultura negra era estudada de forma sistemática. A prática de estudos será adotada também por folcloristas, etnólogos e intelectuais e na primeira metade do último século surge uma geração de estudiosos extremamente importante para nossa história cultural, como Edson Carneiro, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Luís da Câmara Cascudo.

Entre os estudiosos da cultura negra, além de observações in loco, espalha-se o costume de utilizar relatos de viajantes que passaram pela África como fonte de pesquisa, na tentativa de traçar paralelos que explicassem as manifestações culturais que eles observavam na sociedade de então. E nestes relatos estão a primeira pista para as origens do gênero musical que muito tempo depois nós conheceremos como samba. Pessoas formam uma roda, todos cantam, uns batem palmas e outros tocam instrumentos de percussão. Um dos presentes vai para o meio da roda dançar e para convidar outra pessoa a dançar lhe dava um umbigada. Essa forma de bailar era chamada em Angola de ‘semba’ e lembra muito as rodas de partido alto (forma mais tradicional existente do samba, que melhor preserva semelhanças com as formas mais antigas de samba) que animam até hoje vários pontos do Rio de Janeiro.

O carioca Nei Lopes, grande autoridade em tudo se refere a samba, afirma que o vocábulo samba é legitimamente banto, das bandas de Angola e do Congo e significa em um local cabriolar e brincar e em outro uma espécie de dança em que o dançarino bate contra o peito do outro. O próprio Nei Lopes também gosta de citar outras declarações de viajantes narrando celebrações na África bastante parecidas com as rodas de partido alto. Para ficarmos num só exemplo de relatos assim, Alfredo Sarmento, viajante que em 1880 publicou suas memórias de viagens à África, nos diz: o batuque consiste também num círculo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou preta que, depois de executar vários passos, vai dar uma umbigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe a qual vai para o meio da roda substituí-lo. Em quadros do francês Jean-Baptiste Debret, pintor que viveu no Brasil entre 1816 a 1831, também aparecem descrições dessas rodas. A despeito de variações entre o significado exato atribuído ao termo ‘semba’ (ou até mesmo a sugestão de outras origens geográficas e etimológicas como raiz da palavra ‘samba’), parece acima de suspeita que as manifestações mais antigas do que se tornou o samba vem da África.

Se nasceu na África, o samba, ou melhor, o semba, aqui chegou junto com os escravos. E surge outra famosa querela entre os estudiosos, a de se o samba é baiano ou carioca. Fato é que a Bahia era então o maior ponto de entrada de escravos no Brasil. E o semba sofreu um processo de paganização, ou seja, assumiu um caráter lúdico, se tornando mais um divertimento do que um momento de celebração religiosa, como era anteriormente. E o nome samba acabou passando a designar os momentos de diversão dos vários grupos étnicos de escravos, uma vez que escravos de origem banta (oriunda de Angola) estavam entre os mais numerosos.

Outro dado inconteste é a Bahia ter sido ao longo do período colonial e imperial palco de diversas revoltas de escravos, sendo a maior delas a dos Malês (escravos muçulmanos) em 1835. Era comum aplicar como punição aos revoltosos o banimento para outras regiões brasileiras e junto com os escravos também seguiam, naturalmente, suas tradições, consequentemente, junto dos comerciados legalmente, cativos baianos foram espalhados pelo Brasil. Mas não foram só estes fatores que fizeram escravos baianos (e seus descendentes) se deslocarem para outras partes do país, sobretudo rumo a então capital nacional, São Sebastião do Rio de Janeiro.

A partir de 1870 a população negra e mestiça residente na capital (que já era grande) cresceu de forma acentuada. O Rio de Janeiro se converteu no maior polo de atração de população negra, em diversas situações legais. Pessoas em busca de melhores condições de vida, fosse trabalhando nas poucas fábricas nacionais ou nas empresas estrangeiras ou nas casas da elite como empregados domésticos. Acontecimentos como a decadência das lavouras de café no Vale do Paraíba, o término da Guerra do Paraguai (muitos escravos se alistaram baseados na esperança de serem libertos ao fim do conflito, e muitos outros foram integrados as forças armadas de forma compulsória), a grande seca no Nordeste no fim dos anos 1870, a Abolição da Escravatura e a derrota dos seguidores de Antônio Conselheiro em Canudos impulsionaram um fluxo migratório tão grande que a população da capital brasileira aumentasse 150% em trinta anos. Lembrando que boa parte dos migrantes era baiana.

Parte considerável dessa gente foi morar nos arredores do Centro e da Zona Portuária, nos bairros Cidade Nova, Gamboa, Saúde e nos Morros da Previdência e da Conceição (divisão geográfica que posteriormente dará material para outra discussão, a de se o samba é do morro ou do asfalto), juntando-se a massa de pobres que ali já viviam. Tal situação possibilitou o surgimento dum verdadeiro caldeirão étnico, social e cultural. Era costume dos emigrados buscarem residir perto de vizinhos de mesma origem geográfica: baianos, pernambucanos, etc. E será em reuniões na casa de uma baiana, Tia Ciata, que o samba começará a tomar a forma e fama que conhecemos hoje. Mas isso é história para outro texto…

Mais importante que definir se o samba é baiano ou carioca é compreender que boa parte da população negra que contribuiu para seu desenvolvimento musical era de origem baiana, mas morava no Rio de Janeiro e interagia com outras pessoas de variadas procedências. Essa junção de elementos da cultura afro-baiana com heranças culturais desenvolvidas na capital é que criou condições para o nosso samba surgir. Outras cidades passaram por processos de interação cultural semelhante, mas foi o exemplo do Rio de Janeiro que se tornou paradigmático e exerceu maior influência na cultura e no samba desde então.

Para finalizar falta elucidar uma das razões que explicam como ocorreu a metamorfose das tradições musicais reunidas no Rio de Janeiro no samba, tentar entender o que motivou o surgimento de tal tipo de música. Naturalmente que as manifestações culturais não necessitam de um motivo específico para acontecerem. O que pretendo é sugerir uma razão que ajudou o samba a ser aceito musicalmente a princípio, durante o carnaval, por todas as classes sociais.

A História do Samba – Surgimento e aceitação social

História do Samba carnaval

Para explicar essa parte vamos falar um pouco mais de carnaval. Como você comemora o seu? Vai a shows? Sai em blocos? Vai para uma casa de praia com amigos e todas as noites sai atrás de um caminhão de som? Fica em casa comendo petiscos e assistindo os desfiles das Escolas de Samba? No Rio de Janeiro dessa época, a partir de 1870, o Carnaval era ao mesmo tempo parecido e bem diferente com o de hoje.

Havia a influência do entrudo, que era a forma predominante entre as classes populares de brincar o carnaval no Brasil durante o período colonial. As pessoas molhavam umas às outras, numa espécie de combate, com limões-de-cheiro (bolas do tamanho duma laranja, feita com cera fina) e seringas, ambas geralmente cheias de urina e outros líquidos fétidos. O costume foi proibido e reprimido pela polícia, mas até a Corte o praticava. No início do século XX os limões-de-cheiro foram substituídos no gosto popular por confetes, serpentina e lança-perfume. Na próxima vez que você estiver resmungando enquanto sacode dos cabelos, roupas e corpo centenas de confetes pense que poderia ser algo muito mais difícil de limpar.

Com o fluxo migratório começam a surgir os ranchos e cordões, blocos de origem profundamente popular, que inseriram uma modificação fundamental na história do carnaval e do samba: a adoção da formação de procissão religiosa como modelo de desfile. O estandarte à frente, os músicos logo atrás e por fim os foliões. Antes disso a característica que marcava os desfiles pelas ruas era a desorganização, com as pessoas se sucedendo um tanto anarquicamente.

Mas não nos enganemos com o clima festivo do entrudo e dos desfiles de cordões nas ruas. Existia uma nítida divisão social na forma e local de brincar o carnaval: as classes abastadas assistiam a bailes de máscaras e desfilavam em clubes, conhecidos como sociedades, enquanto as classes pobres se entregavam no entrudo. Os bailes eram de gala e somente o topo da hierarquia social de então os frequentava, sendo as máscaras referências ao carnaval de Veneza. Já os clubes as vezes usavam o carnaval, notadamente os desfiles em carros alegóricos, como meio para manifestarem convicções políticas. Enquanto o carnaval das classes pobres era ridicularizado pela imprensa. As músicas que embalavam a festa de cada classe também eram distintas. Polcas, valsas, schottisches, música francesa de salão, estribilhos populares, o repertório das bandas instrumentais, tudo isso tocava nos diversos lugares onde o carnaval era comemorado na capital.

Com o crescimento dos desfiles nas ruas e avenidas da cidade surgiu um problema: que tipo de música tocar para acompanhar a marcha dos foliões? As danças de par e a música de salão (de grande influência europeia e a partir da virada do século, americana), praticadas nos salões burgueses não serviam de mote, já que era impossível caminhar por centenas de metros mantendo a disciplina dos passos e a animação ouvindo tais tipos de música. Haviam muitos músicos entre os pobres remediados, pois era desse contingente que saíam os integrantes das bandas militares e dos grupos de chorões. Porém, apesar da habilidade dos instrumentistas, sua música também não servia para embalar a festa, devido ao ritmo tradicionalmente mais lento. Entretanto, entre os mais pobres as únicas opções eram os instrumentos de percussão, muitas vezes fabricados pelos próprios componentes. E o ritmo binário e acelerado criado por tais instrumentos servia perfeitamente de acompanhamento para as cantigas de versos soltos e muitas vezes improvisados.

Ou seja, a necessidade de um tipo de música que permitisse ao folião brincar o carnaval sem perder a empolgação e sem se perder no ritmo motivou o surgimento de um específico gênero musical. E deu certo, já que o samba, exercendo importantíssimo papel de mediador cultural e social, conseguiu conferir uniformidade musical aos três carnavais que simbolicamente resumiam a festa pela cidade: o dos ricos nos clubes e bailes, o dos remediados na atual Avenida Rio Branco e o dos pobres na antiga Praça Onze.

E a primeira canção a demonstrar o êxito do novo gênero musical foi ‘Pelo Telefone’. Criado na casa de Tia Ciata em 1916, para ser executado no carnaval do ano seguinte, este samba estourou como grande sucesso popular e ganhou status de clássico da nossa música e de primeiro samba gravado. Mas essa história é assunto para outra reflexão. As origens negras, o intercâmbio cultural entre baianos e cariocas (e de pessoas das mais variadas origens geográficas) e o porquê do Rio de Janeiro ter sido palco da história do nascimento do que hoje entendemos como samba já bastam para este texto.

Há uma imensa variedade de tipos de samba, de temáticas abordadas nas letras, artistas, anedotas. Fica o convite para o leitor comentar, perguntar e sugerir próximos temas. Agora é botar o samba para tocar, e se não puder colocar seu bloco na rua agora, convide amigos, arraste o sofá, ligue um player e faça seu carnaval em casa mesmo!

 

Para saber mais:

  • Para ouvir um pouco de rumpi, lê, rum, urucungo, adjá, gonguê, agogô, angona-puíta, afoxê e ganzá (exemplos do imenso conjunto de instrumentos de origem africana que serviram de base para o desenvolvimento de instrumentos brasileiros) escute o primeiro disco da Orquestra Afro-Brasileira (este em vídeo logo abaixo), sobretudo a primeira faixa.

  • A declaração de Nei Lopes está disponível no ensaio Uma Breve História do Samba, no encarte da coleção de discos Apoteose ao Samba.
  • O relato de Alfredo Sarmento, junto com vários outros relatos, está disponível em Os Sons dos Negros no Brasil, de José Ramos Tinhorão.
  • A necessidade de um tipo de música para o carnaval é discutida em Pequena História da Música Popular, de José Ramos Tinhorão.

Até a próxima, Lellison Souza.
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2 thoughts on “Samba, um peregrino – A História do Samba

  1. Vim dar os parabéns pelo texto; está abrangente, mas deixa espaço para perguntas e debates.
    Ao ler sobre a origem africana, lembrei-me também do Blues. O blues exerceu grande influência em outros ritmos (jazz, r&b…); você poderia falar mais da influência do samba nos demais ritmos brasileiros?

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